Encontro de Escritores de Língua Portuguesa em Cabo Verde

Encontro de Escritores de Língua Portuguesa em Cabo Verde

A cidade de Praia, em Cabo Verde, acolheu a VI edição do Encontro de Escritores de Língua Portuguesa, de 1 a 3 de fevereiro. Organizado pela UCCLA e pela Câmara Municipal da Praia, o evento reuniu 30 autores de oito países lusófonos e de Macau, região administrativa da China onde se fala o português.
 
 
A abertura do encontro contou com as intervenções do presidente da Câmara Municipal da Praia, Óscar Santos, do Secretário-geral da UCCLA, Vitor Ramalho, e do representante dos escritores, João de Melo. 
 
    
 
Estiveram, também, presentes o ex-Presidente de Cabo Verde, Pedro Pires, vereadores e deputados da Câmara e Assembleia da Praia, Corpo Diplomático e diversas individualidades ligadas à cultura.
 
  
 
“Em nome dos escritores permitam-me que saúda o povo de Cabo Verde” referiu João de Melo, acrescentando que Cabo Verde é o “país de grandes criadores, poetas, ficcionistas, músicos, criadores de várias artes”. 
 
“Viajamos numa língua comum que, na voz e na obra destes e de muitos outros escritores dos nossos países, nunca foi instrumento de dominação, nem centro de qualquer colonialismo básico e muito menos de um império que nunca existiu. Reclamamos, pois, a inocência histórica da língua portuguesa. Com ela inventámos a solidariedade que se irmanou no sentimento fraterno dos povos, aquém e além dos sistemas políticos e sociais. Havemos de continuar a ser filhos de um povo e a tentar merecê-lo como gente de palavra e de criação, pensadores e praticantes de uma ideia, de uma língua que pertence ao mundo e a quantos dela fazem e fizeram não um troféu de guerra, mas um sítio, um lugar comum, um espaço aberto a todas as vozes e a todos os sonhadores” referiu João de Melo.
 
Para Vitor Ramalho este encontro “tem a ver com aquilo que nós somos, as diásporas, cidadãos do mundo”, recordando os seus primeiros contactos com a literatura.
A memória e a história dos povos de língua portuguesa foi enaltecida por Vitor Ramalho, salientando a realização da exposição da Casa dos Estudantes do Império – patente no Centro Cultural Português da Praia.
 
Para o Secretário-geral da UCCLA devemos afirmar a língua portuguesa no espaço da intervenção globalizada, uma vez que é uma das mais faladas no mundo.
O autarca da Praia enalteceu a realização do Encontro de Escritores na cidade da Praia, o primeiro realizado em Cabo Verde, acrescentando que se trata de um evento que tem como objetivos a “valorização da cultura, a difusão e a promoção das literaturas dos países que comunicam em português, mas visa também estimular o diálogo, o convívio e a troca de experiências entre os escritores dos diferentes países participantes”. 
 
Para Óscar Santos a autarquia tem apostado na criação e realização de “grandes acontecimentos culturais mundiais”, adiantando que “no caso particular de Cabo Verde, é esta a cultura que nos enriquece e nos dá uma identidade especial neste mundo cada vez mais global”.
 
Seguiu-se uma homenagem a Corsino Fortes, primeiro embaixador de Cabo Verde em Portugal, pelo escritor cabo-verdiano Germano Almeida. 
 
  
    
 
Elogiando a pessoa de Corsino Fortes como uma “plêiade de homens nobres a quem Cabo Verde deve referência, respeito e homenagem”, Germano Almeida acrescentou que “recuso para Corsino Fortes a designação de defunto, porque ele vai continuar presente entre nós nos próximos séculos, através da impar obra que soube pacientemente construir e nos deixa como herança de inestimável valor". Germano Almeida reconheceu que “continua a haver na nação cabo-verdiana um evidente deficit de reconhecimento” em relação aos “criadores” da identidade nacional. 
 
A sessão de abertura do encontro contou, ainda, com a apresentação de dois prémios: Prémio Cabo-Verdiano de Literatura do Banco Comercial do Atlântico, em parceria com a Academia Caboverdiana de Letras e Prémio Literário UCCLA “Novos talentos, Novas Obras em Língua Portuguesa”.
 
    
 
O Prémio de Literatura do BCA, apresentado por António Castro Guerra e Vera Duarte, tem como objetivo galardoar uma obra inédita de autor cabo-verdiano no domínio da literatura.
 
António Castro Guerra enalteceu a figura de Corsino Fortes, primeiro presidente da Academia Caboverdiana de Letras, como a pessoa marcante que motivou a criação deste prémio.
 
Vera Duarte, atual presidente da Academia Caboverdiana de Letras, agradeceu à UCCLA a realização deste Encontro de Escritores em Cabo Verde.
Salientado o papel de Corsino Fortes como dinamizador da Academia Caboverdiana de Letras, Vera Duarte adiantou que este prémio vai “premiar obras inéditas e sob pseudónimo” na área da literatura e destina-se a todos os caboverdianos. Tem uma periodicidade bianual e com tema livre.

Veja aqui o Regulamento do Prémio de Literatura do BCA 

 
O Prémio Literário UCCLA foi apresentado por João Pinto de Sousa, da Editora A Bela e o Monstro, e Rui Lourido, coordenador cultural da UCCLA.
 
Prêmio Literário UCCLA destina-se a autores de todos os países de língua portuguesa ainda sem livros publicados. Podem concorrer romances, novelas, volumes de contos e de poemas, desde que sejam inéditos. A obra vencedora será editada e distribuída nos países lusófonos. O autor premiado será convidado para a edição de 2017 do Encontro de Escritores de Língua Portuguesa, ainda sem sede definida.

O regulamento do Prémio Literário UCCLA está disponível aqui  

João Pinto de Sousa explicou como surgiu este prémio e salientou que o mesmo veio colmatar a ausência de prémios para escritores ainda sem obras publicadas, assim como permitir uma maior difusão junto dos países de língua portuguesa. 

Rui Lourido apresentou, ainda, a última edição do livro do Encontro de Escritores de Língua Portuguesa.
 
 
Com os temas “A Literatura e a Diáspora”, “A Literatura e a Insularidade” e “A Poesia e a Música”, durante 3 dias viveu-se a diáspora e a lusofonia, numa convergência de culturas.
 
No primeiro dia, 1 de fevereiro, o tema em análise era “A Literatura e a Diáspora, que reuniu os escritores Vera Duarte (Cabo Verde), Ricardo Pinto (Macau), Yao Jingming (Macau), Alice Goretti Pina (São Tomé e Príncipe) e Miguel Real (Portugal), numa mesa com moderação de Silvino Évora (Cabo Verde).
 
    
 
Vera Duarte abordando o tema “Sodad e memória na literatura cabo-verdiana da diáspora”, confessou que a diáspora está inscrita no ADN dos cabo-verdianos refletindo “a busca dessa outra dimensão mais ampla, não insular, que lhe advém da sua remota origem continental”. “A vida nas comunidades diasporizadas continua a processar-se ao ritmo do bater do coração da pátria distante: é o velho binómio ‘korpu ke skrabu ta bai, alma ke livre ta fika’” (o corpo que é escravo vai, a alma que é livre fica), disse Vera Duarte citando, em crioulo, as palavras do poeta Eugénio da Paula Tavares (1867-1930).
 
A poetisa Alice Goretti Pina, de São Tomé e Príncipe, falou da “Casa da Vida, Cais da Saudade”. “São tão variados os motivos que podem forçar-nos a sair da “nossa casa” e a colocar-nos numa situação transnacional, como fortes são as bagagens que trazemos e as novas raízes que imperiosamente criamos na “nova casa” onde a saudade passa a instalar-se, ou a surgir em visitas geralmente carregadas de nostalgia” relatando a sua experiência de vida e lendo o poema “Bagagem”.
 
Com o tema “Entre a realidade e o imaginário: um olhar sobre a literatura chinesa e macaense da actualidade”, o escritor Yao Jingming falou das diversas facetas da literatura chinesa da atualidade, apresentando as suas principais tendências literárias, os escritores mais representativos, a sua dinâmica bem como as limitações em que ela se encontra. 
 
O romancista e ensaísta português Miguel Real lembrou a história da palavra ”lusofonia”, explicando que foi usada no pós-25 de Abril por uma direita nostálgica do império, que lhe “imprimiu um valor conservador”. 
 
Para o escritor Ricardo Pinto “o que mais o impressiona em Macau é o modo como o território se desdobra em muitos mundos diferentes, quase sempre envoltos em mistério mesmo para quem aí vive”. O Festival Literário de Macau foi destacado por Ricardo Pinto manifestando a vontade que este constitua um encontro entre escritores lusófonos e chineses.
 
 
No início do segundo dia, 2 de fevereiro, deu-se voz aos escritores mais jovens de Cabo Verde num debate moderado pela escritora angolana Ana Paula Tavares.
 
  
 
Silvino Évora foi uma das vozes mais críticas nesta sessão, reconhecendo a falta de “crédito” que os autores mais velhos dão às novas gerações, afirmando que “não há uma solidariedade geracional” na literatura cabo-verdiana.
 
Chissana Magalhães, nascida em Angola mas a residir desde cedo em Cabo Verde, foi a pioneira da blogosfera em Cabo Verde. Reconhece que a nova geração de escritores pretende se diferenciar com a geração anterior.
 
Para Débora Sanches existe a tendência para escrever e guardar a(s) obra(s) na gaveta, face à ausência de espaço para a divulgação. Reconheceu a importância do Encontro de Escritores de Língua Portuguesa para os escritores mais novos “que estão a dar os primeiros passos”.
 
Carmelinda Gonçalves que tem dedicado os seus escritos às crianças, salientou a falta de leitura em Cabo Verde, por parte das camadas mais infantis.
 
Eileen Barbosa salienta que este tipo de iniciativas permitem uma maior ligação entre as diferentes gerações de escritores, mas reconhece que ainda há um caminho por fazer pois “queremos ter editores, contactos, a coragem e o atrevimento de colocar uma obra não só no mercado nacional, mas também nos países de língua portuguesa”.
 
 
Sob o tema “A Literatura e a Insularidade”, os escritores foram recordando as suas origens, as suas vivências de infância, as memórias, os momentos que mais marcaram a sua existência. Neste painel, moderado por Fátima Fernandes (Cabo Verde), contou com a participação de João de Melo (Portugal), Germano Almeida (Cabo Verde), Luís Cardoso (Timor-Leste), Luís Carlos Patraquim (Moçambique), João Paulo Cuenca (Brasil) e José Luís Mendonça (Angola).
 
    
 
O escritor açoriano João de Melo abordou e recordou as suas vivências de infância na sua ilha, São Miguel, Açores, e relembrou a dimensão das ilhas, que pareciam enormes e em que o movimento de emigração era constante - “o movimento de saída era impressionante. O despovoamento dos Açores marcou-me de tal forma que elaborei uma geografia compensatória para recriar um mundo em extinção”. João de Melo afirmou que “todos os movimentos culturais que se geram nas ilhas devem ter como sentido a universalidade”.
 
O cabo-verdiano Germano Almeida confessou que, há vários anos, que não vai à ilha da Boavista “para conservar a memória da ilha da infância” adulterada pelo desenvolvimento da região e pelo turismo.
 
José Luís Mendonça defendendo que Angola é “uma ilha cultural e linguística”, acrescentou que “as línguas que falamos são as línguas europeias: o português, inglês e o francês, que fazem de Angola uma ilha cultural e linguística. Não temos contacto com os criadores, principalmente escritores de países vizinhos”.
Para o moçambicano Luís Carlos Patraquim “cada pessoa é uma ilha em si mesma”.
 
 
No terceiro dia, 3 de fevereiro, o tema “A Poesia e a Música” deu voz aos escritores José Luís Peixoto (Portugal), Abraão Vicente (Cabo Verde), José Fanha (Portugal), Zeca Medeiros (Portugal) e Ana Paula Tavares (Angola), numa mesa moderada por Margarida Fontes (Cabo Verde).
 
    
 
Para o escritor português José Luís Peixoto “há sons que começam e acabam, sílabas que começam e acabam, palavras que começam e acabam. É assim no samba e no semba, na morna e no fado, é assim em toda a geografia deste idioma, de vogais mais ou menos abertas. Que saibamos aproveitar cada pausa, cada passo, para inscrevermos ritmo, porque é o fim que permite o tempo, porque é o tempo que permite a música, a literatura e a vida.” O escritor recordou, ainda, a sua vinda à ilha da Praia, quando deu aulas.
 
Para José Fanha, de Portugal, a “poesia foi sempre música”. Para o autor “a canção vem da terra, do corpo, do coração, e traça um caminho que nos leva da voz ao pé e do pé à voz. A canção é uma festa muito intensa e particularmente presente em toda a lusofonia”, acrescentando que “as canções nascidas neste espaço tão vasto e humano quanto simbólico, resultam quer da apropriação e transformação da língua portuguesa quer do uso das línguas outras que com o português se vêm cruzando ao longo da História”. “Em torno da língua e da poesia construiu-se esta forte e inesperada identidade cultural”.
 
A escritora angolana Ana Paula Tavares mostrou a forma como um a canção marcar um poema, dando o exemplo do Poema da Farra, de Rui Mingas, escrito por Mário António a partir de Jubiabá, de Jorge Amado.
 
Abraão Vicente relembrou que em Cabo Verde tudo passa pela música. “Continuaremos a cantar “Sodadi” no arquipélago da poesia, Cabo Verde, apesar do bit da lusofonia ser agora mais enérgico e estar fora do controlo de padrões e rituais académicos e institucionais. Continuaremos a cantar o nosso funaná a gaita e ferrinho.... continuaremos a receber os novos sons, da kizomba, do semba, ao sertanejo brasileiro, mas é no funaná, na coladeira, no colá san djon, na morna e no talaia baixo que o povo das ilhas continuará a recriar sua essência como alma e percurso. É nestes ritmos que toda a literatura cabo-verdiana constituída música e toda a música feita literatura continuará a ser um linha única alimentando da mesma fonte: as ilhas, o arquipélago, Cabo Verde.“
 
Zeca Medeiros leu a “Crónica de um fado insulano” que a disponibilizamos aqui.
 
 
O encerramento do Encontro de Escritores de Língua Portuguesa contou com uma homenagem a “Arménio Vieira, Cultor da Língua de Camões”, nas intervenções do Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca e da escritora e antiga ministra da Educação de Cabo Verde Ondina Ferreira.
 
    
 
O Presidente da República começou por lamentar profundamente o desaparecimento do escritor Jorge Miranda Alfama, após o que passou a falar com agrado daquele que é seu grande amigo e por quem nutre admiração e gratidão, Arménio Vieira, poeta cabo-verdiano sofisticado, dono de uma obra de qualidade singular.
 
 
A sessão de encerramento coube ao Ministro da Cultura de Cabo Verde, Mário Lúcio Sousa, ao Secretário-geral da UCCLA, Vitor Ramalho, e ao vereador da Cultura da Câmara Municipal da Praia, António Lopes da Silva.
 
    
    
 
Para Vitor Ramalho este encontro foi “extraordinariamente positivo”. Lembrou que a língua portuguesa é das mais faladas e salientou que os escritores dão um contributo muito importante à veiculação daquilo que é “o peso da nossa língua comum”. O responsável referiu, ainda, que será publicado um livro com o resumo das intervenções e relembrou a repercussão que este tipo de iniciativas tem para o “impacto muito grande sobretudo na difusão da nossa língua portuguesa e das nossas literaturas”.
 
Mário Lúcio Sousa confessou ter o desejo de que Cabo Verde volte a acolher este encontro. “Estes encontros são importantes porque de facto estamos num país que já foi colónia em que a língua foi inicialmente imposta e já serviu de instrumento de dominação em várias épocas da história, mas de repente nós nos libertamos, mas não nos libertamos da língua”, sublinhou.
 
 
 
 
 
Publicado em 04-02-2016