Apresentação do livro “Os Silêncios da Guerra Colonial” de Sara Primo Roque na UCCLA

Apresentação do livro “Os Silêncios da Guerra Colonial” de Sara Primo Roque na UCCLA

Uma abordagem diferente no tratamento da Guerra Colonial, com testemunhos de quem a viveu de perto, uma guerra tantas vezes silenciada numa perspetiva realista, onde a morte, o sexo, a droga, o desejo, a saudade, os afetos, foram os ingredientes retratados na obra “Os Silêncios da Guerra Colonial” de Sara Primo Roque, apresentada na UCCLA, no dia 22 de novembro.
 
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De acordo com o Secretário-Geral da UCCLA, Vítor Ramalho, o tema que esta obra aborda é “singular, não é comum, porque no essencial dá conta das reações, dos sentimentos das pessoas, durante o próprio conflito e depois dele. A vários níveis, do ponto de vista das relações familiares, do ponto de vista do amor, do ponto de vista da própria perceção da guerra, do adversário, e, com exemplos muito marcantes e que nos dão conta, de facto, do horror que é a guerra em si mesma, contra toda a condição humana”. 
 
Enaltecendo o trabalho agora apresentado, referiu que “esta referência que você faz a um problema, que não viveu, é no fundo uma reflexão do que respeita aos nossos povos e países. Hoje felizmente, com outra visão, da paz que foi construída com muito sangue, suor e lágrimas e deixou sequelas a todos os níveis, e você fala delas aqui mesmo”.
 
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Com a chancela das Edições Pasárgada, esta obra nas palavras do editor Ozias Filho é o “culminar de um trabalho que já vem sendo feito há muito tempo”. Destacando a relação com a autora, de cerca de 20 anos, relembrou que a mesma começou “através das letras”, com um trabalho sobre o bairro alentejano. 
 
Relativamente ao projeto do livro “Os Silêncios da Guerra Colonial” só o título “já era avassalador. Tomei contacto com o texto, é um texto duro. Como é um texto de que fiz revisão, eu tive de parar algumas vezes para respirar… Para acalmar, porque parece que nós vivenciamos, à nossa maneira, o que lá se passou. E publicar um livro dessa natureza, para alguém que publicava ate então só poesia e prosa, que também já é difícil, era um salto muito grande”. 
 
“É um projeto que me orgulho, sobretudo, por dar voz à Sara Primo, que é uma pessoa extremamente batalhadora e extremamente fiel às suas ideias. O livro não traduz as ideias dela, traduz uma parte das ideias dela, uma parte da investigação. Mas traduz todo um outro mundo que eu desconhecia” acrescentou.  
 
A escolha da imagem da capa do livro é resultado de um ensaio fotográfico, de Ozias Filho, denominado As Arestas, que tem a ver com a dor, logo “isso dirá muito, para quem for ler o livro ou para quem tenha o imaginário de uma guerra, seja ela a guerra do ultramar ou outra qualquer. Toda a guerra envolve dor”. 
 
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O livro foi apresentado pelo Coronel Lopes Dias, vice-presidente da ADFA (Associação dos Deficientes das Forças Armadas), que começou por descrever a associação a que pertence como “uma associação que nasceu a partir daqueles que voltaram da guerra magoados, mutilados e doentes e que, não aceitaram ficar à espera e formaram a sua associação e, a partir dai, iniciaram a sua verdadeira guerra: a guerra pela reabilitação, pela dignidade, pelas reparações murais e reconhecimento e também, pela reconciliação”. 
 
O Coronel Lopes Dias, ex-combatente, também deu o seu depoimento e testemunho no livro que o define como “duro, mas é um livro extraordinário”, cujo título é “claustrofóbico”, porque “abre a porta a muitas coisas que se tem escondido e que continuam a esconder-se ainda”.
 
Fazendo a análise do livro, Lopes Dias divide-o em três grandes capítulos: o primeiro é a “confiança”, o segundo o “levantar dos véus” e o terceiro a “realidade”. Confiança pelo desempenho da Sara “como investigadora antropológica para este trabalho, ela teve capacidade, engenho e coragem para, no fundo, apresentar-se perante os seus colaboradores, que deram os testemunhos. E, soube levar ao máximo, ao máximo possível, a cumplicidade entre ela e os ex-combatentes e deficientes das forças armadas que deram os seus depoimentos”, acrescentando que “por ser mulher, por se ter também apresentado como mãe e amiga. Ela levou a cumplicidade ao limite.” A segunda parte o “levantar dos véus” é “para se ver o que lá está por baixo do véu e eu acho aqui, na leitura do livro da Sara, a minha análise passou por 7 véus… é que ela tem a coragem de pegar, de levantar 7 véus da nossa história”. A terceira parte a realidade “é descrita no livro, o que é que foi esta realidade? A realidade da guerra, a realidade do sofrimento todo que nos foi imposto, a todo o povo português.”
 
Para Lopes Dias foi uma “guerra estúpida, evitável e inútil, que provocou imensos, 10 000 mortos, 25 000 deficientes das forças armadas, para nem dizer mais, porque aqui nem estou a contar com os homens de stress de guerra, porque se os contasse todos, eram muito mais… mas à partida 25 000 com certeza absoluta e, de facto, foi muito duro para Portugal, era evitável este esforço se nós tivéssemos direito à democracia, à liberdade”. 
 
Finalizou destacando que “não podemos esquecer esta parte da nossa história. Porque a história não se pode meter debaixo do tapete e aqui a Sara, com o seu livro, veio ajudar, dar um contributo fundamental, importante, para que a história não se meta debaixo do tapete. Assumi-la com frontalidade e tirarmos daí lições, para um país melhor, um país mais amigo para os portugueses e para todo o mundo e para aqueles que hoje são países independentes.” 
 
Os testemunhos que estão no livro “são testemunhos da base deste povo. Da base do povo que foi obrigado a caminhar para a guerra, que lhe foi imposta, porque não havia outra solução, porque o povo português não tinha informação. Só tomava alguma consciência quando chegava lá. Afinal eu fui enganado!. Porque todos somos seres humanos, brancos, negros, amarelos, todos somos seres humanos com a mesma dignidade. E aí, é isto que, no fundo, é preciso reconquistar…. a dignidade de todos os homens, perante todos.” 
 
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Para a autora Sara Primo este é um tema “necessário para a reconstrução do passado histórico português e também para a reconstrução de uma memória história coletiva”. Agradeceu toda a ajuda e empenho do Coronel Lopes Dias na investigação e na realização de entrevistas com os ex-combatentes. 
 
Sara Primo confessou que o tema da guerra colonial surgiu na sua vida “desde que me conheço. Eu sou filha de um ex-combatente que foi ferido em Moçambique, numa mina antipessoal, por isso eu cresci a ouvi falar sobre a guerra colonial. Não pela voz do meu pai, porque os ex-combatentes não falam destas coisas com a família, mas através da minha mãe que me foi relatando os embarques, as despedidas, os aerogramas, que tive a oportunidade de ler, as visitas aos hospitais militares, e também me foi relatando as idas à Associação dos Deficientes das Forças Armadas e o stress da guerra que felizmente, e repito felizmente, não atingiu a minha família, mas atingiu muitas famílias de ex-combatentes. Por isso, por constantemente ouvir falar sobre o tema da guerra colonial, nasceu em mim uma vontade imensa de falar sobre ele, até para sossegar algumas das minhas curiosidades sobre o tema e de escrever sobre ele.” 
 
O papel das mulheres - antes, durante e depois da guerra - é retratado ao longo de toda a obra e a autora confessou que “as memórias da guerra colonial estavam muito reservadas às salas de psiquiatria, ou seja, ao ex-combatente e à mulher do ex-combatente e aos filhos de ex-combatente, apenas lhes estava reservado um lugar, a sala de psiquiatria. E era impossível, o nosso país, reconstruir a sua memória, se continuássemos a falar de guerra colonial dentro das salas de psiquiatria. Então descobri que era exatamente isso que eu queria falar, eu queria trazer para o espaço público as memórias que estavam guardadas nas salas de psiquiatria”. 
 
Descrevendo a dureza das entrevistas, a emotividade dos testemunhos e a crueldade dos relatos, os ex-combatentes pediram a Sara que “levasse este tema das memórias e dos silêncios até onde” pudesse. Elaborando diversos guiões, a autora entrevistou “todas as pessoas que me podiam falar sobre a guerra colonial. Esses guiões são extensos, demorados, mas tiveram um propósito. Eu queria tratar a guerra colonial, ou seja, eu queria falar da guerra colonial antes do embarque para África, a estadia dos ex-combatentes na guerra e depois o regresso, por isso esta obra está montada com os silêncios coloniais e os silêncios pós-coloniais”. As entrevistas foram “muito duras, eu cheguei a ter entrevistas de 5 horas seguidas e tive momentos em que me apeteceu desistir. Por uma simples razão, estava a ser muito penoso emocionalmente para mim, porque eu também estava a ser confrontada com uma realidade que desconhecia” confessou.  
 
Descrevendo algumas das entrevistas, Sara afirmou que “eu sentia que eles confiavam em mim e que, aos poucos, íamos cada vez mais entrando na guerra e entrámos nas mortes, entrámos na sexualidade, na heterossexualidade, na homossexualidade, entrámos no prazer… no prazer de ver o outro sofrer, porque aquele outro matou o meu companheiro… e é como se o tivesse perdido algo e estas coisas foram-se desenrolando….”. “Depois achei que estes silêncios iam muito para além dos ex-combatentes e estes silêncios também existiam nas mulheres. Elas acompanhavam os maridos à consulta de psiquiatria e pediam aos psiquiatras, que também elas doentes precisavam de ser acompanhadas. Percebi que elas tiveram um papel fundamental, primeiro, um papel fundamental em termos ideológicos e um papel fundamental em termos afetivos. As mães, as namoradas, as mulheres, foram alimentando, sem saber, esta guerra. Porque lhes escreviam, porque aumentavam a moral dos soldados. E no regresso, estas mulheres continuam a ter um papel fundamental na vida destes homens. E, o mais importante é que estas mulheres despiram-se da sua identidade de mulher e passaram a ter um papel protetor e maternal relativamente a estes homens. Estas mulheres existem, estão vivas, cansadas, os filhos estão também cansados”.
 
Para Sara este livro “é a concretização de um sonho. E, sobretudo, é o meu contributo para que a sociedade portuguesa acorde para esta questão da guerra colonial. Este livro é apenas uma gota na quantidade de silêncios que giram à volta deste tema. Este livro é duro.”
 
 
Biografia:
Sara Primo Roque nasceu em Lisboa, em novembro de 1973. Licenciou-se em Antropologia, em 1998, pela faculdade de Ciências Sociais e Humanas, pela Universidade Nova de Lisboa. Em 1999 discutiu a sua tese de Licenciatura na qual obteve dezoito valores. Em 2005 terminou o seu mestrado em Colonialismo e Pós-Colonialismo no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), obtendo "muito bom" com unanimidade na discussão da sua tese A Guerra Colonial e os seus Silêncios. Participou com alguns textos na revista brasileira Vozes. Atualmente é professora do Ensino Básico.
 
 
 
 
 
Publicado em 24-11-2018